Passei a infância na cidade onde nasci, Carazinho, no Planalto Médio do Rio Grande do Sul. Uma infância feliz, livre, inclusiva e criativa. Minha mãe era professora em uma escola pública e, por conta disso, era lá que eu também estudava, apesar das condições econômicas familiares que me permitiriam frequentar uma escola particular. Sempre gostei desta escolha dos meus pais. No Grupo Escolar Princesa Isabel eu brincava com crianças de diferentes espectros socioeconômicos e esta diversidade contou muito na construção dos meus valores e caráter. Tive a sorte de ter pais progressistas que, inclusive, se envolveram na política municipal, um aprendizado e tanto, por vezes sofrido, é verdade.
Na pequena cidade do interior, uma das brincadeiras que mais me animavam era a casinha improvisada na bergamoteira de casa. Coloquei tábuas entre os galhos e pra lá levava as xícaras, panelinhas e outros acessórios de cozinha. E a cereja do bolo: minha mãe costumava colocar a borra do café aos pés da bergamoteira. Inventei, então, um baldinho preso a uma corda que descia até lá, recolhia a borra e subia até minha casinha para servir de ingrediente ao café que eu servia. Lembro o prazer que sentia naquele movimento de descer o baldinho e puxar a corda. Meu filho também teve uma infância feliz na capital gaúcha. Sempre com uma bola para chutar, com todo clube Sogipa para correr e seus amiguinhos inseparáveis.
Conto isso porque estamos às vésperas do Dia da Criança, uma data que sempre me provoca sentimentos ambíguos. Nas redes sociais, as famílias postam as fotos do dia divertido, com muitos presentes e alguns exageros. É um recorte da nossa sociedade ou de todos os privilegiados deste Brasil tão desigual. E é justamente aí que fico angustiada, pensando nas milhares de crianças que não ganham nenhum presente, porque não há dinheiro sequer para o pão. Crianças que assistem nas mídias a alegria de outras tantas e que vão introjetando, desde cedo, a ideia de que a felicidade não é pra todos. Na verdade, não consigo alcançar o que se passa naquelas cabecinhas do Brasil profundo, este que nós quase nada conhecemos.
Penso, também, nas crianças vítimas das guerras nojentas que o mundo trava. As que morreram, as que ficaram órfãs, as mutiladas, as que carregarão pra sempre o trauma de terem vivido essa indigência moral que leva a assinatura dos poderosos homens adultos.
Que me perdoem os que estão achando esta coluna pouco comemorativa pra data. De fato, não tenho grande romantismo enquanto milhões de crianças não desfrutarem dos direitos de viver a infância como merecem. Aos que também me consideram piegas, repito o inevitável sinto muito. É isso mesmo, eu sinto muito e não consigo desconsiderar as crianças desprivilegiadas. Talvez o Grupo Escolar da minha infância explique uma parte desta decepção. Não vivi em uma bolha, mesmo com pai médico e mãe professora, que me presentearam com a oportunidade de brincar com amigos diferentes entre si.
Pode ser uma reflexão dura, mas quem sabe nos inspire a dar alguns passos na direção desta infância menos desigual. Quem não quer ver todas as crianças felizes?