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Coluna da Paty

Patrícia Viale

Gula, pecado do diário ou pecado do senhor Capital?

Tudo girava ao redor do quilômetro 15,5, inclusive a vida. Aquela que existe, mas ninguém percebe. Quinze e meio era referência até mesmo para os cães da localidade encontrarem-se para uivar em noites de lua cheia. O vilarejo não tinha nome. Conhecíamos por o pedaço 15,5 entre os quilômetros 15 e 16, na localidade de Todos os Santos. Lá um homem tinha uma fábrica de fazer carneiros, aqueles bichinhos pequeninos, de pelagem clara, para quem não conhece.O destaque desta fábrica era Madame Ovelha, emprenhada regularmente e cercada de cuidados, como o chá do amanhecer na cama, banhos de sol, limpeza dos cascos e outras regalias. Naquela manhã, Madame Ovelha optou por uma caminhada ao sol. Preocupou-se em passar filtro solar fator 40 na cara, agora redonda pela gravidez. Caminhando pôs-se a pensar na agenda recebida pelo homem: parir no próximo mês; check-up com o veterinário; vinte dias de tratamento nutricional intensivo e logo após, um novo encontro. Quem será desta vez? Ela sempre ficava ansiosa com esses encontros às escuras. E acariciando a barriga ela sabe que a urgência é se preocupar com o baby e rezar ao Santo Ovelheiro, para que o rebento não vire churrasco de domingo.

Entretida com seus profundos pensamentos, Ovelha Torino Silva não percebeu a movimentação ali perto. Não escutou o barulho sutil no capim e o dançar das pontas do mesmo. Só voltou ao mundo real quando uma de suas patas foi sugada por um buraco escondido num monte de folhas. A patinha dolorida impediu que a Silva olhasse ao seu redor. Sequer deu tempo de se assustar. Cobra, que não era Norato, atacou Madame Ovelha pelas costas. Sem dó, nem piedade. Apenas fome. A ovina berrou enquanto suas patas traseiras eram engolidas. Suplicou ajuda aos céus e clemência ao predador. Não me engula, senhora! Estou prenha! Um filho meu nasce nas próximas semanas! E a Cobra fingiu não escutar o apelo. Estava preocupada em engolir o banquete duplo, triturar os ossos, digerir músculos, vísceras e depois então descansar. Mas que sorte! Num só ataque, aperitivo e prato principal. Estou satisfeita! A Cobra fechou os olhos e enquanto a comida entrava lembrava dos tempos difíceis, de refeições minguadas. Sua sorte começou a mudar quando encontrou aquele homem gordo, de cara engraçada, que fazia previsões. Disse que ela seria feliz e que um novo caminho de fortuna se abriria. Seus olhos brilharam ao constatar a verdade logo a sua frente. Engoliu o homem em quatro bocados. O sabor era interessante, porém o excesso de gordura atrapalhou a digestão. Precisou devorar uma farmacêutica e seu estoque de digestivos. Mas ali estava o marco da nova vida. Desde então comia presas gordas, bois, elefantes e agora ovelha dupla. Tudo grande. Numa outra época chegou a procurar uma psiquiatra. Estava preocupada com esta mania de grandeza. Comia apenas tipos enormes. A doutora, que pesava cerca de 90 kg, iniciou a sessão com atenção especial ao tópico frisado, mas antes de chegar à primeira pergunta já tinha suas duas pernas tragadas.

A Ovelha balia, chorava, suplicava, resmungava, gemia, amaldiçoava. Pedia por seu bebê. Clamava pelo futuro do mesmo. E a Cobra, de olhos fechados, apenas engolia. A ação deglutir se realizava de uma maneira perfeita e sem obstáculos. Após o término da refeição, a Cobra resolveu dar uma caminhadinha para facilitar a digestão. Rastejou por alguns metros e chegou a uma estrada de asfalto, quente. Estava sonolenta, com vontade de dormir. Um cochilo aqui não vai ser ruim e me dará forças. E ali ficou para a rápida sesteada. O sol de quase verão acariciava seu couro, esticado pela Ovelha campeã e filhote engolidos. A quase mãe realizava seus últimos movimentos de desespero. Era uma súplica. A agonia final. E a cobra cochilou profundamente.

Minutos rápidos se passaram naquele cenário e a estrada trepidou. Outra vez.  A trepidação aumentava sem mostrar imagem alguma. Porém ao fundo, bem fundo, olhos atentos perceberiam uma carreta vindo de maneira acelerada. Já próximo da Cobra, o motorista enxergou o volume postado no asfalto e buzinou. Faltando poucos metros trombeteou sem tirar o dedo da buzina. Não podendo interferir nos fatos avançou por cima da Cobra, Ovelha quase mãe e filhote, homem gordo, psiquiatra e tantos outros. Um grande estrondo preencheu a cena. A carreta passara por cima de todos e continuara o seu caminho. Tão ligeiro quanto no início. Tal qual a vida no dia-a-dia. No asfalto do quilômetro 15,5 vísceras, ossos partidos, sangue de todos os tipos, náusea, músculos danificados, gritos chorosos e desespero de todas as cores espalharam-se.

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