O mormaço penetra pela porta. Volta e meia uma galinha-d’angola larga as fraquezas no degrau de pedra que separa a casa do terreiro. Encarapitada no tamborete que foi do vô, brinco com a Marquesa, minha boneca de palha. Em silêncio, a vó mexe o angu com a colher de pau. De repente, a mãe que nem corisco entra trazendo lenha e novidade.
“Tive inda agorinha com um pessoal aí”. A vó tira uns gravetos do feixe, manda a mãe ‘ponhá o resto ali no cantin’. “Tão preocupado demais da conta. Diz que gente graúda lá da capital vai afogar isso tudo aqui, pra fazer represa. Na hora alembrei do pai, que vivia contando do que sucedeu naquele lugar donde ele veio… como era mesmo o nome… Barra Velha, é, acho que era isso”. A mãe aperta as mãos sem despregar o olho do fogo. Ainda em silêncio, a vó põe água no feijão. Queria perguntar que negócio é esse de represa, mas a Marquesa, num chiu!, me manda tomar tento no papo. E eu fico quietinha: num sou boba de desobedecer a Marquesa não.
“Se for verdade mesmo essa história de represa, de barragem, sei lá como chama esse troço, é capaz deles correr com a gente daqui. Já tem até um doutorzinho zanzando aí na cidade com a papelada, mandando todo mundo assinar e que despois vai mandar o dinheiro pra nós… Diz o pessoal que é coisa trocada, mixaria pouca que num dá pra comprar nem terreninho na encosta de morro”. A vó destampa o arroz. “Diz também que vai correr um abaixo-assinado e despois levar pro prefeito e, se num adiantar, vamo se reunir e procurar a justiça.” A mãe chega à janela, unhas na boca: “Ir pra donde, gente?” A vó larga a colher na beirada do fogão: “Fia, tava demorano pra disgrama desse tar de progresso chegá. E quando ele ê vem, num tem jeito não.” A mãe grita que essas coisas não podem acontecer, a gente tem direito de morar ali, isso tá errado… tão alto o grito, chegou assustar as maritacas lá na mangueira. A vó balança a cabeça. Os olhos dela, mais opacos que o normal, voltam a cair nas panelas: “Demorô, mais chegô. Agora é entregá pra Deus, fia”.
Largo a Marquesa de lado. A boba ameaça abrir o berreiro, não dou confiança. Paro na porta vendo as lonjuras além do cercadinho. O vento vem rodamoinhando, rodamoinhando, levanta poeirão na estrada. Será o tar de progresso chegando que nem saci-pererê? Essa disgrama, que mete tanto medo na mãe e que deixa a vó triste, será que vem arrasando tudo pelos caminhos igual boitatá?
Todo emproado no terreiro, o Lica responde glu glu glu. Mostro a língua pra ele, olho de novo a estrada. Pena o pai ter ido simbora arranjar trabalho; pena eu não ter o braço forte igual o dele… se tivesse, escorraçava o tar de progresso dessas bandas, num deixava essa represa botar os pés aqui.
O vento muda de rumo. O poeirão sobe pro pasto, onde Dorico rumina sua velhice de burro. Danada da vida, a mãe passa correndo por mim. Um moço alto, de barba e óculos escuros, apeia dum carrão com dois mal-encarados; um empurra o portãozinho, o outro tem a mão na cintura. A vó puxa meu ombro: “Fia, vai brincá com a Condessa”. Condessa não, vó, é Marquesa! Ela trunfa a cara e, com um coque, diz: “Vai lê os livro que a fessora deu procê e larga mão de xeretá conversa de gente grande”.
Foto de Joni Neto