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Coluna da Paty

Patrícia Viale

Entre irmãos

Para o meu irmão, o Chico Viale

Não ouso chorar. Não ouso gritar até perder a voz. Ver-te sem vida dentro de um caixão foi a cegueira da minha alma. Algo morreu naquele instante. Parte da minha vida se foi junto contigo. Quando eu poderia imaginar que alguém tão jovem, tão saudável poderia morrer assim? Tão sem aviso. Sentados debaixo do nosso plátano Gabriel tu me deu uma bronca porque não te convidei para o passeio da semana passada. Sentados na grama, tomando sol. Lembro da tua voz, dos teus braços estendidos, naquela rara folga. Um guri tão cheio de compromissos. Um guri tão cheio de vida e pressa para viver. Saberia tua alma que o fim se aproximava? Hoje tento resgatar aqueles olhos e então tentar desvendar o que sentia teu coração. Não tinha uma direção aquele olhar, apenas a contemplação de quem vive em paz. Quem vive em paz não olha com direção, olha como um pássaro que voa feliz. Todos os pássaros são felizes né? Mas não os que vivem em gaiolas. Lembra a vez que dávamos comida para os canários lá de casa e vimos o olho do canário amarelo e ficamos ali, parados, hipnotizados pela tristeza que aquele animal transcendia no canto? Depois daquele encontro de olhos nunca mais conseguimos tratar os canários. Descobrimos ali que amor com gaiola é possessão, é tristeza para ao menos um.

E quando tu olhava no meu olho. Olho que vagava no meu. Dizia que iria descobrir meus segredos. Mas eu não tinha segredos para ti. Meu coração era teu desde o dia em que te vi pequenino, um bebê tão inofensivo e tão apaixonante. Eu com seis anos e tu recém começando. Eu me achando sábia diante daquele bichinho que mexia os bracinhos e fazia sons tão diferentes. Ali nossos olhos se cruzaram. Verde no castanho. Castanho no verde. E nossa árvore cresceu com raiz, com folhas e ramagem fresca. Cresceu tão grande, tão rápida. E lá na ponta nossos olhos continuavam juntos. E nas raízes nossos corações se entrelaçaram, meu irmão.

Corações entrelaçados fazem o que? Choram sem precisar de dor. Choram porque se compadecem com a beleza do instante. Meu coração sempre chorou ao te admirar. Ao ver aquele menino tão frágil crescer e tornar-se um homem tão justo. Há tanta beleza num homem justo, que não se aflige com mágoas. Um homem que dirigiu por quilômetros quando soube que a irmã tinha perdido a cachorrinha para a morte. E que secou cada lágrima com palavras desencontradas. Um homem, que nunca tocou numa enxada, mas que cavou um buraco para aquele corpinho. Sentada ao teu lado, vendo o suor escorrendo pela tua camisa social, as bolhas saltando naquelas mãos nada brutas. Mas tu cavou o buraco. Tu pegou o corpinho da Malu. Cobriu com terra. Tu me olhou e eu chorava. Chorava de tristeza pela morte da minha companheirinha. Chorava pela emoção de te ver tão desapegado da tua aparência. Chorava por ter um irmão tão carinhoso. Naquela noite eu rezei baixinho ao teu anjo da guarda, que protegesse teu coração da maldade, e te abençoasse por tanto amor.

Tu não acreditava na maldade. A vida era boa para quem assim desejasse, era o que tu me dizia quando eu reclamava de algo. E eu ficava quieta ouvindo tuas teorias. Ficava quieta ouvindo sobre teus trabalhos, primeiro os da escola, os da faculdade e os da pós-graduação. Lembra das madrugadas em que estudávamos, parágrafo por parágrafo, os textos? E eu achando que tu tinha dúvidas. Tu só queria companhia para aquele estudo. E eu ficava tão feliz. Dormia me sentindo tão poderosa no meu cargo de irmã mais velha.

Lembrei de ti meu irmão. Não estamos conseguindo ir à Porto Alegre para doar sangue. A capital está afogada de tanta água, tantas dores e lágrimas. Têm sido dias tristes e lembrar do teu sorriso ameniza um tanto desta dor. Seguimos em frente. Tu diria isto nos dias de hoje. E eu continuo repetindo isto a todo instante.

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