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Coluna da Paty

Patrícia Viale

Lagarteando com Bergamota Azeda: Uma Crônica da Vida Docente – Por Profª Ma. Mariane Soares

A jornalista Paty Viale empresta a sua coluna, nesta semana, para a professora Mariane Soares e o ofício de ser professor. 

Por Profª Ma. Mariane Soares

Nós, gaúchos, cultivamos uma filosofia simples e solar: lagartear. Não se trata da preguiça ociosa, mas da arte serena de se estender ao Sol, deixar o tempo fluir devagar enquanto a pele absorve calor, o corpo produz vitamina D e o pensamento se distrai.

Embora não me arrisque a definir uma origem para a lagarteada como nós a conhecemos, sei que a inspiração está no hábito do lagarto de ficar ao Sol. Mas posso afirmar que é um termo nosso para um costume antigo: um banco, um gramado, uma roda de amigos e, claro, uma bergamota na mão, ou mexerica, para os que vêm de outras querências. Acompanhado de um chimarrão de erva pura folha, moída da grossa então… pega ainda mais apreço. O cheiro cítrico invade o ar como promessa de leveza. Ali, entre um gomo e outro, entre um riso e outro, a vida se revela em pequenos lampejos de sossego, conversas banais e até confidências.

Mas o que tem a ver essa cena bucólica com o nobre e espinhoso ofício do magistério? Tudo, meu querido leitor. Lagartear é um ato de resistência.

Lecionar, para quem, como eu, o faz por vocação, é um modo muito próprio de lagartear. Entramos em sala como quem se expõe ao Sol: na esperança de um calor humano, de uma troca genuína, de uma luz que aqueça a mente e o espírito. Às vezes o sol é fluorescente e frio, mas a gente finge, ou finge tão bem que acredita, que é primavera lá fora.

A turma nos espera como uma roda de amigos: olhos atentos, ou dispersos, corações abertos, ou cansados, mas ali, prontos, talvez, para partilhar o momento. O ideal platônico da sala de aula é esse: um campo ensolarado de ideias.

A bergamota, nesse cenário, é o conhecimento, formado por gomos espiralados e diversos. Fruto que se descasca com paciência, se bem colhidos, revelam gomos que, escorrem saborosos. A cada conteúdo compartilhado, espera-se que o saber se espalhe no ar como perfume cítrico, daqueles que grudam na memória e na alma.

Mas nem toda bergamota vem doce.

E é aí que o magistério revela sua acidez. Há sempre aquele gomo implícito: A pilha de planejamentos e correções das avaliações que desafiam a noite e o juízo; A reunião que engole o intervalo e indigestamente te atravessa o dia; O aluno em crise que devolve ao mundo sua raiva, ferido e sem palavras doces.

Sim, há no exercício do magistério muitas bergamotas azedas, todas juntas na bacia da lagarteada.

Mas há ainda um tipo particular de bergamota azeda. Aquela que parecia promissora, redonda, colorida, madura ao toque… e, ao ser aberta, revela o que ninguém queria ver: o apodrecimento por dentro. As mentes absortas e diluídas pelo uso excessivo das telas. Podre, é o cérebro soterrado por excesso de telas, que não consegue mais se conectar com a realidade, nem absorver conhecimentos para desenvolver habilidades essenciais à vida. A promessa era doce: informação ao alcance do toque, conexões instantâneas, saberes diversos em vídeos curtos e artigos intermináveis. Mas o que era para nutrir, começou a fermentar.

O pensamento, antes curioso, se torna impaciente. A memória, antes ágil, se desfaz em fragmentos curtos, como gomos murchos que já não sustentam nem o próprio suco. A bergamota, que deveria perfumar o momento do saber, agora fede à distração crônica, à dependência dos cliques, à ansiedade pixelizada e à agressividade evidenciada pela falta de noção sobre os próprios deveres estudantis.

O professor vê isso. Se angustia, porque lagartear é um ofício nobre que tem por objetivo extrair o sumo doce do conhecimento. Vê olhos que não desgrudam da tela nem para ver o mundo. Vê mentes que pulam de assunto em assunto, sem jamais fincar raiz em ideia alguma. 

E o professor sente, ao morder esse gomo, o travo do conhecimento raso, da atenção podre, da reflexão que nunca amadurece.

Ainda assim, ahhhh o professor. Ele insiste! E segue lagarteando, porque entende que até na bergamota azeda, ou mesmo na que começa a apodrecer, há algo a se salvar.

A esperança da lagarteada é que sempre há a possibilidade de encontrar um gomo intacto. Talvez uma semente. Talvez o gesto de ensinar a plantar de novo.

Então, o professor não larga o fruto. Morde o gomo com coragem, mesmo sabendo da careta que virá. Porque ali, mesmo no azedo, há vitamina, há força, há resistência. A lagarteada docente é um salto de fé: mesmo sob o Sol opaco da desvalorização, mesmo sentado sobre o chão duro das burocracias, o professor permanece. Não por teimosia, mas por convicção.

Afinal, ensinar é cultivar primaveras futuras com sementes colhidas no presente.

O professor mastiga o amargo da sala lotada, digere o gosto ruim do descaso, mas continua. Vai abrindo gomo por gomo, esperando que, quem sabe, o próximo venha doce, suculento, generoso.

E segue, de rosto virado pro Sol, literal ou simbólico. Segue trocando ideias, como quem troca mudas em uma horta: semeando, adubando, regando com palavras.

Porque, no fundo, a sala de aula é um campo, e a fala do professor é enxada, é chuva, é Sol.

Porque sabe que o amanhã pode trazer uma bergamota melhor, que o calor, ainda que breve, é essencial. E que o sabor da docência está também nas suas arestas, nas suas raspar, na sua casca.

E assim seguimos, lagarteando entre luzes frias e afetos quentes, com a bergamota azeda da educação entre os dedos e a esperança doce no peito. Mesmo com a boca contraída pelo azedo, ele não se levanta para dar as costas ao lagartear.

O professor fica.

Permanece.

Persiste.

O professor nunca desiste!

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