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Coluna da Marta

Marta Schlichting

Nem as mães são felizes, Cazuza

Comecei a ler “Coração sem Medo” – o mais novo livro do premiado escritor Itamar Vieira Jr – em um sábado. Três dias depois já estava finalizando esta obra intensa e bem escrita, quando aconteceu a megaoperação policial no Rio de janeiro. A mais letal, que pode, sim, ser chamada de chacina. Como jornalista, acompanhei todas as matérias, imagens e análises possíveis. Não bastasse a violência de tudo o que assisti, a história de Rita Preta – personagem principal do livro de Itamar – só reforçou a tristeza que senti. Rita Preta é mãe de três filhos, mora em uma favela e empreende uma luta corajosa para esclarecer o desaparecimento do filho mais velho. Ao longo das páginas, vamos descobrir que Cid foi abordado por policiais que o confundiram com um criminoso e que acabaram por executá-lo. Rita não quer só descobrir o que houve; quer o corpo do filho para lhe dar, ao menos, um fim digno. Sem corpo, a morte não tem fim para quem fica. É o mesmo sentimento das mães e familiares daqueles que foram sequestrados, torturados e mortos pela ditadura militar. Aqueles desovados em alto mar, enterrados sabe-se lá onde e dados como desaparecidos. Rita Preta grita em um dos trechos que “para as mães da periferia, a ditadura nunca acabou”.

Eu não defendo bandidos, nem crime organizado, antes que me acusem. Mas assim como Rita, sei que polícia não é justiça. Que todo criminoso, mesmo que boa parte da população não concorde,  tem direito à ampla defesa, a um julgamento e sentença. Ou não é assim que estas mesmas pessoas defendem quando se trata de criminosos de “alto padrão”? A justiça, com todas as suas falhas e limitações, existe para isso, sob pena de darmos legitimidade aos justiceiros e instituirmos a barbárie como modus operandi.

Dos cerca de 120 mortos, segundo levantamento oficial, 17 não tinham antecedentes criminais. Quatro eram policiais. As pesquisas feitas após o evento revelaram que a maioria da população aplaude a operação porque, afinal, bandido bom é bandido morto. O governador do Rio, Claudio Castro, já sabia dessa aprovação  quando autorizou o confronto, mirando na sua popularidade e nas eleições que se avizinham. Mas, pra mim e outros tantos, a operação não foi o sucesso que afirmou o governador. Ela foi mais do mesmo, um espetáculo grotesco e midiático que há décadas se repete sem nenhum resultado efetivo. O crime organizado só cresceu nos últimos 40 anos, provando que este método é inócuo.

De todas as cenas que assisti, as que mais me impactaram foram das mães debruçadas sob os corpos enfileirados no chão. Eram inúmeras Ritas Pretas chorando seus mortos. O que sentem as mães nesta hora? Culpa, dor, indignação? E elas, por acaso, não têm direito a estes sentimentos? Mesmo que seus filhos fossem criminosos, o que sentem estas mães? E as mães dos policiais que morreram também? O  povo predominantemente pobre e preto que vive nas favelas deseja – com toda legitimidade – o combate ao tráfico e crime organizado, assim como todos nós. Só que não basta entrar nas comunidades, fuzilar uma centena e nunca mais voltar. Não basta matar um dia e não prover a segurança diária, a saúde, educação e oportunidades que possam construir outros futuros para estas pessoas. A roda seguirá girando, os cabeças das organizações seguirão patrocinando as armas, lucrando e assistindo do alto de suas coberturas o sangue que respinga em todos que estão aqui no chão.

O romance de Itamar nos faz ver que a escravidão no Brasil não acabou, ou ao menos ainda não acabou a crença de que preto e pobre devem servir ou morrer. A polícia também não pode mais reproduzir os chamados capitães do mato que perseguiam os escravos em fuga de seus senhores. A herança do nosso sistema escravocrata está aí, pra nos envergonhar.

Em tempos de Feira do Livro de Porto Alegre, que coincide com o Novembro Negro, indico “Coração sem Medo”, último livro da Trilogia da Terra, iniciada com Torto Arado e seguida por Salvar o Fogo. E agradeço, imensamente, ao autor que, apesar das dores de Rita Preta, constrói uma narrativa poética e oferece à personagem um final que não deixa dúvidas: o amor sempre nos salva, mesmo nas grandes tragédias.   

Em tempo: para quem não sabe, Cazuza compôs a música “Só as mães são felizes”, nos anos 1980.

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