A mulher rei usa máscara, e eu fecho os olhos
Na playlist, Mano Chao. Clandestino. O fone apertado no meu ouvido. Volume no seu máximo. O céu da sexta-feira está encoberto de morte. Uma fumaça de cor vibrante, densa, repleta de partículas de vidas desperdiçadas, mortas desnecessariamente. São famílias de insetos, aves, mamíferos. Árvores milenares e brotos frescos. Dizem que as labaredas do incêndio são maiores do que os nossos prédios. Pegou fogo no outro lado do continente. Lá morrem com o calor. Aqui sufocamos com a fumaça da morte. Tudo que o fogo encontrou pela frente transformou em não vida. Tento desconhecer o fato e caminho para uma das aulas do mestrado. Hoje a professora vai falar sobre gerenciamento de conflitos. O lenço do pescoço cobriu a boca e o nariz. Meu primeiro conflito é conseguir respirar durante o trajeto. Sinto a morte em cada respiração. Sinto os gritos dos animais sendo queimados vivos. Como se sentisse suas almas se desprenderem, dos seus corpos inocentes, numa dor intraduzível. Era para ser assim? Quem acendeu a primeira fagulha?
Uma princesa não enterra seus mortos
O ônibus passa lotado, e sou obrigada a caminhar até a universidade. A fumaça será minha companheira. Esfumaçada está minha cabeça. Ontem minha irmã mandou uma mensagem questionando o inventário de nossa mãe. Ela acha que não sou merecedora de um apartamento, avaliado em 800 mil reais, um terreno na zona rural, de 55 mil reais, e uma conta no banco, com 2.400 reais. Ainda disse que devo assinar um documento de cessão de direitos universais para ela. Pergunto porque ela acha isso, e ela manda a foto do corpo da nossa mãe, estendido no chão, a poça de sangue ao redor. Primeira vez que vi a foto. Na noite da morte de nossa mãe, fui eu que encontrei ela desassistida no chão. Não consegui me aproximar. Fiquei sentada no chão observando aquela inatividade. Como minha mãe era perturbadora, até mesmo no quase morte. Minha irmã chegou com a ambulância tempo depois. Não contei os minutos. Não narrei nada. Nem sequer consegui me movimentar. Minha irmã disse que matei aquela que era nossa mãe e que, se eu tivesse feito algo, tocado, mexido, sacudido, feito respiração boca a boca, pressionando o ferimento, hoje viva ela estaria. Já faz um ano. Todo dia 06 sinto o sangue descer na minha calcinha. Não é menstruação. É choro das entranhas. Sangra no dia 06 e encerra no dia 07. Respondi a mensagem prometendo assinar o documento.
Mulheres não voam, mulheres rastejam
Na universidade a confusão era grande. Pessoas choravam, limpavam os olhos, improvisavam máscaras, bebiam água. Teve quem chorasse e quem não reagisse. A professora tentava acalmar o grupo e alguém ironizou que estávamos em uma aula prática, como cobaias de laboratório. Enviei a mensagem para a minha irmã e sentei num lugar vago, longe da janela emperrada, que ostentava uma generosa fresta. Cinco minutos se passaram. A colega de casaco branco chorava com as mãos no rosto, e a professora tentava escrever no quadro a frase “Conflitos necessitam de calma nas atitudes de resposta”. Alguém viu corpos de pássaros mortos na rua e comentou que precisávamos recolhê-los. Eu vi aves coloridas voando na sala de aula. Voavam livres. Parecia poesia. Fui até à janela contemplar o cenário insólito. A notificação do whatsapp soou. Era um “joinha” da minha irmã seguido da frase: “Veja o horário do tabelionato. Na segunda-feira estarei aí para assinarmos o documento”. Muitos mortos flutuavam, em forma de partículas, no céu alaranjado e, na próxima semana, eu assinaria um papel para me desfazer de 428.700 reais.