Meu primo Zeca saiu de Porto Alegre e foi até a Bahia de carona nos anos 70. Depois que voltou, lembro de ouvi-lo contar histórias dessa viagem. Nessa época minha irmã e eu éramos as primas menores e ele nos contou que tinha conhecido uma menininha na Bahia de quem tinha ficado amigo. Disse que era uma menina esperta e que adorava brincar, mas que não tinha nenhum brinquedo, então, se distraía com plantas, animais e pedaços de coisas quebradas. Contou que o maior sonho dela era ter uma boneca. Denise e eu tínhamos várias em casa e dissemos que queríamos lhe dar uma. Meu primo nos garantiu que, se um dia voltasse para lá, levaria nosso presente.
Algum tempo depois, nossa boneca chegou até a garotinha. Zeca nos contou do entusiasmo dela ao abrir o pacote. Aquele episódio foi, para mim, um marco na consciência do quão privilegiadas nós éramos se comparadas com a realidade que o Zeca nos fez ver. Um brinquedo para o qual nem dávamos tanta importância era o sonho de outra criança!
Depois dessa viagem, Zeca teve outra experiência marcante. Ele participou de um projeto de alfabetização com o método Paulo Freire numa comunidade de Porto Alegre. Era estudante de Economia e estava se dedicando a alfabetizar adultos. Só fui entender o significado dessa experiência quando comecei a ler textos do Paulo Freire já na Faculdade de Letras. A educação vista como processo de libertação, as palavras-geradoras surgindo do diálogo e do interesse em conhecer o universo do aluno, a realidade como matéria passível de transformação, tudo isso me interessava e me motivava a estudar.
Logo no primeiro ano de faculdade, comecei a dar aulas para adultos. Foi uma experiência desafiadora. Quando terminou o semestre, uma das alunas que tinha mais dificuldades estava lendo. E, no último dia de aula, na nossa despedida, ela me pediu um livro. Fiquei muito emocionada. Percebi ali, com aquele pedido meio envergonhado, meio orgulhoso, a potência transformadora da educação. Uma moça que trabalhava como empregada doméstica e frequentava um curso à noite para aprender a ler, depois de um semestre, estava manifestando um desejo que certamente era antigo, mas que tinha podido finalmente se realizar: ler um livro. Que orgulho dessa aluna!
Hoje penso que as histórias do Zeca foram um grande impulso para que eu decidisse ser professora. O amor que ele expressava na convivência com as pessoas era parte da sua fé na potência que mora em cada um de transformar o que está ao seu redor.
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Zeca Moraes foi Secretário de Desenvolvimento Econômico e Assuntos Internacionais no Governo Olívio Dutra (1999 – 2002). Participou das negociações com a Ford e foi acusado de ser responsável por “mandar a Ford embora do Estado”. Em 2016, a verdade finalmente veio à tona com a condenação da Ford a pagar R$ 216 milhões de indenização referente à quebra de contrato firmado com o Estado. Em 2021, ela fecha sua fábrica na Bahia para onde havia ido em busca de mais incentivos fiscais.