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Coluna da Paty

Patrícia Viale

Equilíbrio

Está tudo congelado e já é noite. Tudo parado. Ninguém consegue falar com outro ninguém. Estamos todos isolados. Completamente isolados. O carro da polícia passa rápido pela rua com a sirena sooando. Que medo sirene de polícia! Pela janela vejo as pessoas que caminham rápido, olhando para o chão. Estou sozinho. Ninguém ligou. Ninguém procurou. E sequer conheço ninguém. Como a vida fica confusa quando não conhecemos ninguém.

Fica ainda mais difícil viver depois de ser assaltado na rua e ter, justamente, sua bengala roubada. Foi ontem, antes de tudo congelar. Não era bonita, mas sim charmosa. Talvez por isso o larápio tenha levado-a. Minha amiga de passeios. Meu equilíbrio. Minha segurança. Sem minha bengala nada sou. Já me levaram quase tudo nessa vida. A morte levou Eunice. Um carro levou Banzé. A vida levou meus filhos e meus netos. E agora um estranho levou minha bengala. O que mais me resta? Nada mais tenho. E nada mais posso esperar, a não ser a morte, pois quando se começa a sentir aquela dor diária no peito, aquela porcaria que sufoca e nos faz chorar… que futuro eu posso ter? E sem Eunice, o que posso querer? Viajar não teria graça. Divertir-se perdeu o sentido. E amar já é impossível. O que faz a falta daquela mulher na minha vida…

Depois foram os filhos: independentes, cheios de sonhos e amantes de tantas modernidades. O que podem querer com um velho que se veste com roupas gastas e velhas, que compra pirulitos para as crianças e até mesmo escreve cartas para um amigo distante. Estou atrasado, obsoleto. Sou repugnante, feio e arcaico. Além disso, de que serve um avô na vida dos netos de hoje?

Então adotei Banzé, um vira-lata muito simpático. Levei-o para casa e tratei-o como um filho de quatro patas. Leite morno pela manhã, um bom pedaço de carne ao meio-dia, passeio e pêlo escovado à tarde. À noite outro copo de leite morno. E durante o dia pequenas gulodices conforme sua vontade. Como eu era feliz com aquele menino! Tão obediente, mas muitas vezes um respondão! Que feio! Então veio um carro e não viu Banzé, balançando o rabinho, para atravessar a rua. Nessa época pensei em beber, só que um amigo que é médico disse que seria meu fim. Não bebi.

E agora minha bengala. Não consigo sequer ir ao banheiro sem ela: estou trêmulo, minhas pernas fragéis, meu equilíbrio já se foi a tempos. E comprar outra bengala… Ah, não! Seria jogar dinheiro fora. Já estou para morrer! O que fariam depois com minha bengala nova? Não, não é uma boa idéia. Talvez o melhor seja simplesmente deitar e aguardar a morte. Morrer. E deixar de ser feio e asqueroso aos olhos de meus netos. Parar de ser um peso nas costas dos meus filhos. Enfim, não mais desequilibrar a vida.

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