Minha avó materna nunca despiu os pés na minha frente. Raras foram às vezes em que a vi usando sapatos. Somente chinelos de vovó, bem macios, como seus olhos nos dias de assoprar as velas do bolo de aniversário. Nos pés da minha vó Neusa brotaram joanetes, como brotam ervas daninhas nos jardins bonitos. Joanetes duros, altos e dolorosos. Matos indesejados na primavera. Quando se fazia o inverno, os pés dela não suportavam botas quentes. Apenas calçados de feltro ou pantufas de lã. Por conta disto ela parou de passear. Seus pés foram se deformando. Sua pele foi afinando, ressecando, arroxando, rompendo, sangrando, se desfazendo em sinfonias que eu nunca soube acompanhar. Ainda criança vi o corpo da minha avó deformar junto com seu caminhar, tomando proporções só vistas naqueles filmes de guerra, onde os prisioneiros comiam suas próprias dores. Meu avô Fábio, casado com a vó Neusa, gostava de histórias de guerra somente na televisão, dizia ser história de gente cadáver e me contava como pessoas viravam apenas corpos esquecidos. Por isto eu sabia que minha avó estava numa guerra e ali ela era a prisioneira.
Uma única vez a Neusa tirou as meias e os chinelos na minha frente. Foi num sonho, em um agosto. Eu recém chegada em terras suíças, ela plantada nos campos de cima da serra. No devaneio tão real olhei seus pés, que já não eram mais deformados, nem machucados e nem assombrados eram meus olhos já crescidos. Eram pés com pequenas asas. Perguntei sobre os seus chinelos e ela apenas sorriu. Sorriso de alma leve. Pegou na minha mão rapidamente e depois saiu a caminhar pulado, como se em nuvens estivesse. Acordei no meu décimo terceiro dia no cantão suíço de Aargau. Fazia sol no verão europeu, época de safra de maçã e caminhadas pelas trilhas das florestas urbanas. Era inverno cinza granizo no sul do Brasil. O sonho não se desmanchou. Plantou angústia no meu peito choroso de lágrimas derramadas. Eu ali sentada no piso do banheiro do meu apartamento suíço. Banheiro chique com cara de hotel. Sequer sabia eu o motivo daquele vazio que afogava minha manhã numa tina de desespero. Horas depois do café da manhã, o telefone tocou e a voz de minha mãe confirmou: tua avó se foi.