O Canecão foi uma casa de espetáculos no coração da Zona Sul do Rio para onde a maior parte da minha ínfima mesada de adolescente era direcionada a partir da segunda metade dos anos 70 para eu ver, praticamente de pertinho, Gal, Betânia, Caetano, Rita… Antes de fechar as portas, em 2010, me deu aquele friozinho gelado, lá no fundo, barriga colada com espinha, ao conseguir comprar duas entradas para ouvir o vozeirão do meu pra-sempre-ídolo Billy Paul. Já com 50 anos, imaginei-me entrando numa máquina do tempo que me deixaria direto nos salões lotados de jovens que só desejavam se acabar de dançar numa pista iluminada por globos espelhados giratórios e luzes estroboscópicas até o cabelão desgrenhado grudar na cara, principalmente embalados pelo soul do Billy. O meu marido avisou que não poderia me acompanhar. Assumi que não perderia essa “viagem”. Fruto de uma geração em que mulher não ia sozinha a show, dois dias antes, tomei coragem para convidar uma antiga amiga de escola, mesmo sem vê-la há três décadas. Isso só foi possível porque o número do telefone fixo da casa dos pais das amigas de escola ainda eram os mesmos! Olga ficou “toda boba”, disse ela, por lembrar dela. Nunca fomos melhores amigas, mas amigas pros embalos, principalmente de sábado à noite. Ela era tão apaixonada pelo Billy como eu. Dançamos muito ao som de “July, July”, enchíamos os pulmões no refrão de “Me and Mrs Jones”, nos entreolhávamos em suspiros de fãs ainda que agarradinhas aos nossos respectivos paqueras, nas discotecas. Grande na altura, em seus longos cabelos de cachos castanhos fartos, no sorriso escancarado, nas covinhas em cada bochecha, nos gestos gigantescamente carinhosos de abraços que me engoliam, ela gargalhava largo e me chamava de FantaUva em sua fala alta, rouca e divertida! Mais livre que eu, única menina entre 4 irmãos, a Olga falava palavrão, andava na garupa nas motos dos garotos mais velhos, surfava e ainda era chamada de chincheira e outras coisitas mas pelas más línguas, no colégio católico. Ela nem ligava. Ria, aprontava, não tinha vergonha de nada. Eu a idolatrava meio que invejando tanta exposição. Eu, lá de dentro do meu casulo, envergonhada de muito do que desejava fazer, numa época dividida entre repressão e libertação feminina. Na manhã do dia do show, ela me ligou repetindo que era muita honra eu ter lembrado dela, mas não estava muito bem. Falei que seríamos eu, ela e o Billy, no fechamento do Canecão. Momento igual não existiria mais! Nos encontramos na entrada e tomei um susto: Olga de saltinho e vestido na altura do joelho! Impossível a minha gigante surfista que só vestia camisetas Hang Ten roubadas dos irmãos, de umbigo aparente e rego à mostra quando se sentava de calça cocota, e que só calçava tênis pampero… de saltinho e pretinho básico? “Me vesti assim pra te acompanhar, FantaUva!” Dentro do meu jeans mais largadão de “coroa inconformada”, praticamente liberta (!), e de tênis pra dançar muito, repliquei: “Pra te mostrar como eu sempre quis ser tudo o que você representava, Olguinha!” No salão, nem sentamos. Dançamos, cantamos, rimos, nos abraçávamos no início e fim de cada música. Suspiramos e lacrimejamos com a Nossa “Your Song”. “Ôôôôô- ôôôô…” Gritamos juntas “te amo, Billy!”. As pessoas em volta olhavam e desviavam o olhar da Olga, Impossível não notá-la: a alegria das mãos agitadas e do corpo lembrando as danças de época. Já o sorrisão estava coberto por uma máscara esquisita, cor da pele bem artificial, que encobria nariz, boca e maçãs do rosto, incluindo as covinhas, muito deformados por uma doença gravíssima, vim a saber depois, nos meses seguintes em que a visitava. Enquanto ela gravava pra mim a trilha das nossas vidas num álbum com dezenas de CDs, no pequeno quarto-estúdio, nos momentos lúcidos da morfina, conheci uma melhor amiga. Rimos muito: Olga não curtia maconha, teve uma única paixão, sonhou em ter filhos e amava mergulhar no fundo do mar para curtir o silêncio.