Poucos sabem de um problema de saúde que me acompanha desde sempre. Desconheço a origem do mal. Segundo literatura médica, a causa pode ser genética ou um forte impacto no cérebro, atingindo a hipófase, mais conhecida como glândula pituitária. No meu caso, a segunda alternativa é a mais provavel, graças a um tombo entre um trem e a plataforma de embarque na estação de Bagé. Tinha uns cinco anos e ia para Santana do Livramento com D. Élida, minha saudosa avó. Aliás, li outro dia que este trajeto foi reativado agora com o nome comercial de “Trem dos Pampas”, viagem que pretendo fazer ainda este ano, para rever as terras onde deixei minha infância e de repente, quem sabe, possa encontrar um pedaço de minha pituitária perdida pela Campanha. Mas aí seria assunto para outra crônica, mais leve e povoada de reminiscências gaudérias.
O fato é que a deficiência me levou a construir uma amizade inesperada e inseparável com um objeto que marcou profundamente minha vida. Algo que se tornou imprescindível para a sobrevivência com um mínimo de conforto e conveniência. Sem ele, não sei se ainda estaria por aqui digitando estas bem traçadas. Algo que as famílias de antigamente não abriam mão e que hoje ainda presta serviços úteis por aí. Algo que era guardado escondido nos escaninhos das casas. Algo que convivia e ainda convive com as entranhas mais secretas dos seus usuários fiéis.
Falo de um objeto que, apesar de todo o desenvolvimento proporcionado pela inteligência artificial e seus desdobramentos, permanece o mesmo com o passar dos tempos. Com pequenos ajustes, é verdade, mas cumprindo com seus objetivos de ajudar o próximo.
No meu caso foi realmente uma companhia indispenável, mas que ao mesmo tempo me causava embaraço e vergonha. Um relacionamento, digamos assim, secreto. Uma parceria que só era percebida pelos mais íntimos, como mãe, pai e irmãos. Também pela Mamama, minha ama de leite, e pela Gladis, minha irmã preta, cúmplice de vida por longos e felizes anos.
Ele era frio, especialmente à noite, no inverno gaúcho. Ao longo do dia voltava para seu esconderijo e ali permanecia aguardando meu chamado. Não era de meu uso excluivo, mas de quem precisasse de seus préstimos, na ausência de outra alternativa. Era de fácil manutenção, não necessitando de especialização nenhuma além de desapego com as coisas dispensadas pelo corpo humano.
Desnecessário dizer que meu problema causava a dor de uma família que assistia ao primogênito beber mais de oito litros de água a cada 24 horas, por quarenta anos, sem nenhuma explicação. Após buscar ajuda com diversos especialistas, incluindo do mundo espiritual, achamos o diagnóstico com um endocrinologista daqui mesmo. O nome do treco é Diabetes Insipidus Neurological. Traduzindo: não produzo a quantidade de hormônio antidiurético como todos os mortais. Coisa raríssima. E o mal não é beber rios de água, mas a quantidade imensa de xixi dispensados diariamente, o que pode causar a morte por desidratação em poucas horas. Bebia água para repor o que saía e o que saía ia para o meu parceiro, em noites interrompidas, de sono aos retalhos e manhãs de penicos cheios.