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Golpe de sorte – Elis R. Beltram

Que vida tinha sido! Bem aproveitada, cheia dos maiores prazeres mundanos que estão ao alcance da mão humana e de uma hora para outra se viu livre, sem destinos inalcansáveis, objetivos inatingíveis ou barreiras intransponíveis. Tudo em um estalar dos dedos. Olhando para trás, os detalhes até se confundiam no entrevero das memórias e de alguns dos lugares por onde andara apenas lembrava vagamente, tantas eram as lembranças misturadas em sua cabeça cheia de vivências transformadas em histórias para contar. Ainda sentia o arrepio subindo pela espinha provocado pelo vento gelado do alto das montanhas que só conhecia pela TV e não esqueceria o calor do fogo da brasa que antecipou o assado mais macio que seus dentes consertados morderam. Conhecera através de todos os sentidos os quatro cantos do mundo. De cabo a rabo cruzou por céu, terra e mar e riu de si ao recordar como estava nervoso ao sentir pela primeira vez um avião deixar o chão firme enquanto as casinhas ficavam cada vez menores pela janela. Tudo havia mudado com aquele golpe de sorte. Usara cada uma das 24 horas para benefício ou prazer próprios: basta de desperdiçar o seu melhor por um chefe que nem sabia seu nome ao assinar as férias à contragosto! Desde então seu dias tinham se tornado mais confortáveis e ele tinha ampliado este conforto num raio envolvente. Conhecera tanta gente diferente e fizera incontáveis amigos novos. Havia vivido um, dois ou três amores para recordar. Nenhum para ficar. Uma meia dúzia para esquecer com a mesma velocidade que surgiram novos amigos, alguns da onça como veio a perceber. Apenas detalhes irrisórios em uma vida memorável. Esfregou as mãos suaves e macias e apertou sorrindo onde os calos já não estavam. Nunca mais cortara as mãos em trabalho manuais ou gastara uma energia enorme realizando pequenos consertos por não ter condições de pagar por eles. Havia anos que deixara a vida de fazer para desfrutar da despreocupação de quem pode mandar fazer. Estralou a coluna e flexionou os joelhos agradecidos por não terem mais que suportar a mesma geladeira em mudanças forçadas a cada aumento do aluguel que o seu salário não acompanhou. Essa vida pertencia a um conhecido distante que por tempo demais o encarou como um velho amigo pelo espelho. Foram-se sem saudade os dias de guardar o troco contado em moedas para o caixinha das compras básicas da semana e há muito ficaram para trás as caminhadas longas que, por mais cansativas que fossem, não valiam a passagem do ônibus. Essa reservava para o indispensável: a volta do mercado com sacolas pesadas, os dias de chuva forte em que buscava a menor na escola ou para ir até a casa da mãe almoçar uma comidinha simples e caseira. E que emoção foi vê-la entrar na casa nova toda mobiliada, com direito a vestidos floridos no roupeiro e armário estocado. Com um brilho no olhar, pensava em tudo aquilo que o dinheiro traz, alcança, conforta ou resolve. Olhou para a colega que o cutucava no ombro, puxando sua manga. Eu disse treze, não três. Abaixou os olhos, encarando incrédulo o bilhete recém transformado em pedaço de papel sem valor que ainda segurava entre os dedos calejados, abriu a mão para deixá-lo cair e num único movimento agarrou o crachá e o colete e deu as costas, pronto para iniciar mais um turno.

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