Medo. Do frio? Da imensidão? Do desconhecido? Provavelmente não. À saída do finger do aeroporto de Anchorage, no Alasca, as expectativas aumentavam a cada passo firme da jovem mestiça. Do lado de fora, pelas janelas, via-se a neve caindo sobre as asas que a trouxeram de volta às suas origens distantes. Um lugar gélido, imenso, e muito branco. Ela sonhava com tudo isso. Mas tinha medo.
No corredor aquecido, num bilhete escrito à mão, em inglês, o alerta: “Diferentemente dos ursos marrons e pretos, os ursos polares raramente blefam. Se você estiver no campo de visão de um urso polar e ele decidir atacá-lo, esteja pronto para se defender e matá-lo. Porque, do contrário, ele irá matar você”. Ao lado do papel, um exemplar de três metros de altura do mais eficiente — e, por isso, tão temido — predador do Ártico. A jovem arqueou o pescoço até seus olhos chegarem à enorme cabeça da fera. Não se intimidou, contudo. Apertou com a mão o antebraço esquerdo, espremeu os olhos, franziu a testa e, com os dentes à mostra, trincados, pareceu grunhir.
Não foi esse o seu primeiro encontro com a fera. Era o dia do seu aniversário de 12 anos. Dentro da casa de madeira, a filha de um inuíte com uma branca aguardava a chegada dos pais com a pesca especial daquele dia: salmão fresco. Seu prato favorito. A menina entretinha-se manuseando cuidadosamente o cabo da faca ulu para o futuro escalpe do peixe. Virou-se bruscamente para o lado ao ouvir algo se partindo de forma ruidosa. Assustada, abriu a porta e se deparou com aquele animal branco, feroz, que devia ter o triplo do seu tamanho. As garras do urso rasgaram a parca de pele de foca e também a carne do antebraço esquerdo da menina. Por instinto, quase simultaneamente, ela o atacou empunhando com força a ulu com a mão do outro braço. A lâmina afiada atravessou o pelo do animal, fazendo brotar uma mancha rubra sobre a grossa e alva camada de pelos. A fera bramiu, ferida, enfurecida. Num espaço de tempo curtíssimo, mas que, para a menina, era infinito, o urso ergueu-se, ameaçando um novo golpe — e desabou sobre a neve com um tiro certeiro na sua cabeça.
A história, com relatos nem sempre coincidentes, correu a aldeia secular dos inuítes nos dias que se seguiram. Entre a bravura da menina e a pontaria do pai, o que restou foi o receio de que uma nova investida do mundo selvagem poderia ocorrer ali. Acharam todos que o melhor seria levá-la para Seattle, cidade em que moravam seus avós maternos. Estudou e cresceu entre prédios altos até se graduar como veterinária. Uma década depois daquele ataque, retornou para a aldeia inuíte. Ao entrar na casa dos pais, onde passara a infância, viu a ulu, intacta, pendurada na parede. E o medo ficou do lado de fora.